A Ordem, o poder da palavra e a palavra do poder

Um e-mail mal intencionado e revelador de ignorância, que questionava rudemente a pertinência de uma Ordem dos Comentadores Políticos, serve-nos de pretexto para alguns esclarecimentos que para os nossos associados serão óbvios, dado o estado das discussões internas, mas que o público em geral, ou mesmo para alguns comentadores não inscritos na pró-Ordem, podem não ter presentes.
Insultos à parte, como a utilização da ofensiva expressão “voz do dono”, escrevia esse leitor: “Uma Ordem dos Comentadores? Serve para quê? Para fazer um exame de estupidez para poder fazer comentários políticos?”, concluindo na sua má fé com uma ironia fraca: “não é precisa nenhuma ordem, isto já só lá vai com um Medina Carreira em cada televisão!”.
Antes de mais, diga-se que quer o tom quer o conteúdo desta missiva reforçam a ideia por nós já defendida de que a profissão de comentador político, apesar de ser tantas vezes apenas um trabalho de bom senso sobre o senso comum, deveria ser considerada uma profissão de alto risco, já que atrai as atenções de lunáticos enfurecidos com a mania que têm coisas importantes a contrapor aos comentadores.
Mas, apesar desta forma (no mínimo enviesada) de colocar questões, poderemos encontrar algumas dúvidas que outros, de boa fé, mantêm nomeadamente: para que serve uma ordem dos comentadores políticos? Deveria existir algum exame de acesso à ordem ou outras formas de limitação do acesso à profissão e de regulamentação do mercado?
O movimento pró-ordem pensa numa Ordem dos Comentadores Políticos sobretudo enquanto espaço de auto-regulação da actividade com vista à constituição de uma deontologia do comentador político no qual se abrem ainda possibilidades de debate interno sobre as várias estratégias e modalidades de comentário. Assim, descarta a ideia de uma Ordem que manipule o mercado livre do comentário político através de qualquer intervenção restritiva.
Em primeiro lugar, porque qualquer intervenção daria lugar a conclusões altamente contraproducentes sobre a natureza do comentário político maioritário, dando o aspecto de um feudo fechado, com regras corporativas, e também porque limitaria a liberdade dos grupos económicos de contratação de quem queiram. Assim, a defesa do mercado livre deve ser compatível com a aparência de um livre mercado das ideias.
Em segundo lugar, como sublinhado em documentos anteriores, porque tal intervenção nada acrescentaria, antes pelo contrário, à coexistência da ideia da livre expressão e igualdade no comentário político com a prática discursiva do especialista escolhido e apresentado como tal. Se todos têm direito abstractamente à palavra, alguns têm concretamente mais direito, devem exercê-lo e estão, de facto, a exercê-lo. Intervir supostamente para regulamentar seria afogar o comentário político na dúvida, descredibilizando todo o sistema fazendo cair na praça pública questões que são do nosso domínio profissional e dando o flanco a todos os leigos mal-intencionados, como o autor do e-mail citado, que logo iriam gritar raivosamente: porquê estes especialistas e não outros? Estes são especialistas em comentário ou em política ou em economia? Não acham que têm espaço demasiado na comunicação social? O que faz um especialista em comentário político?
Em terceiro lugar, e resumindo, porque, à partida, na nossa actividade não existe o perigo de uma desregulação perigosa uma vez que a regulação está assegurada naturalmente pela mão invisível do mercado, pela cumplicidade com as linhas editoriais existentes, por ligações de confiança temperadas com anos de trabalho em conjunto, por um sistema de reprodução do comentário e do comentador e de reciclagem lento mas seguro e confiável.
Claro que tal levanta problemas. Como qualquer mercado há ganhadores e perdedores, como em muitos mercados há uma saturação, com muitos amadores a querer entrar na profissão pensando que seja actividade simples, onde se pode navegar as sucessivas vagas informativas sem muito trabalho de fundo, dando “a sua opinião”. O que, aliás, cria outro perigo para os comentadores: um conjunto alargado de falhados e invejosos crónicos, que pensam que teriam direito a ocupar o lugar dos outros. Para além disto, não deixa de ser preocupante a situação de toda uma geração de jovens comentadores políticos altamente qualificados mas à rasca, tantas vezes a incubar na blogosfera enquanto esperam a sua vez de ingressar no campo dos comentadores mais consagrados.
Mas isto é apenas a ordem natural das coisas, não podendo uma Ordem fazer muito sobre isso.